O diploma de amor eterno

    Francisca acordou, naquele dia, bem mais cedo do que de costume... O sol demoraria a nascer. Mas muita coisa ainda precisava ser feita... E, mesmo que pudesse, a ansiedade não permitia que ficasse mais tempo na cama.
    Os poucos parentes e amigos convidados já haviam chegado. Antes da cerimônia, que ocorreria a partir das 10 horas na capela da vila, era preciso arrumar mesas e cadeiras... Os arranjos de flores do campo seriam a única decoração. E eram, aos olhos de Francisca, muito bonitos. As flores foram colhidas, na véspera, por José. Coube a Francisca, com auxílio de suas irmãs mais novas, a tarefa de dispor as flores em vasos adornados com fitas de cetim.
   O pão-de-ló já estava pronto... Tinha sido assado na noite anterior. E a torta de morangos fora decorada antes do sol nascer. No preparo das saladas vizinhas e amigas garantiram participação. A mãe temperou a carne - prato principal do almoço festivo. Os pães e as cucas correspondiam ao padrão de qualidade de tudo o que se podia ver no ambiente. "Tudo estava a contento" - pensou, com um sorriso no rosto, Francisca.
    Depois de um rápido café-da-manhã Francisca foi se preparar para o inesquecível dia que tinha pela frente. Tomou um banho demorado. Colocou, com todo cuidado, o vestido usado por sua mãe, na cerimônia de casamento com seu pai, vinte anos atrás. Um vestido simples, de renda, mas de um encanto digno de abordagem literária. No cabelo Francisca preferiu colocar um arranjo de flores. A mãe, sensibilizada pelo momento, chorava baixinho. Seus soluços ecoavam pela casa. Ninguém percebia. Ciência disso só tomava, Francisca, enquanto se arrumava.
    As irmãs falavam sem parar. O pai, um senhor de olhar bastante expressivo, esperava do lado de fora do quarto. Não menos emocionado, por certo, do que a mulher que se banhava em lágrimas no quarto. Os amigos e outros parentes já estavam na capela. Francisca irradiava felicidade. Este era, com certeza, o melhor dia de sua vida. Casaria com o homem que amava... Com o homem que amaria até o fim da vida. José também era de família humilde. A vida não seria fácil. Sabia, entretanto, que amor e compreensão jamais faltariam.
    O "sim" verdadeiro
    Francisca entrou na capela, na companhia do pai, pontualmente às 10 horas. Afinal: nunca fora adepta a atrasos. José a esperava, com os olhos azuis brilhando e o coração batendo forte, diante do altar. E foi assim que, naquela manhã quente de outubro, Francisca e José juraram amor eterno. Em clima de espontânea alegria a festa de casamento - da união de Francisca e José - durou até o entardecer.
    Francisca, ao se casar, tinha apenas dezesseis anos de idade. Hoje beira os oitenta. Já lhes falei de uma conversa que tive com ela na praça central da cidade. O nome Francisca foi lançado a um passado que sempre será motivo de alegres lembranças. Porém: a outrora moça Francisca, agora, prefere ser chamada de Dona Chica. 
    Respeitemos, então, as suas exigências. Dona Chica é o personagem do resto desta história. Na praça central, em um encontro genuinamente casual, ela me premiou com o que descrevo no início desta crônica. Fez, ao sentir que eu estava disposta a ouvi-la, um relato completo das alegrias vividas no dia de casamento. Também falou das expectativas de véspera e, é claro, das jornadas futuras. 
    Junto com José Dona Chica viveu um leque enorme de situações. Algumas da mais extrema felicidade. Outras nem tanto. Houve, inclusive, momentos de desvanecimento. "Só o incrível amor que nos uniu abriu caminhos para a sustentação do 'sim' que pronunciamos diante do altar", conta Dona Chica a quem lhe dá atenção. "Em muitos momentos os casais, mesmo aqueles que se amam demais, são desafiados a enfrentar obstáculos que parecem intransponíveis", explica ela. 
    Quando resolvi ter um papo com Dona Chica pensei estar oferecendo um gesto de generosidade. Muito pelo contrário... Ela foi quem, na verdade, se mostrou desprendida ao me dar uma imensidade de lições sem um mínimo de exigências. Em menos de uma hora de conversa, com Dona Chica, graduei-me na área do amor. Saí com um terno abano e um diploma que, mesmo informal, talvez seja o mais precioso que já recebi. O diploma da arte de experimentar o amor eterno.
    Dona Chica é enfática: "Amor só existe de um jeito. A gente se compromete afetivamente com o outro e jamais sequer cogita uma desistência". Ela revela que o sonho do casamento foi acalentado desde que se conheceu por gente. O namoro. A dedicação. A conquista. A certeza da confiança e, finalmente, as juras de amor eterno. Dona Chica se recorda que, ainda bem pequenina, antes mesmo de entrar na escola, seu sonho maior era um bom e durável casamento. Com todos esses ingredientes.
    Amor sem mácula
    Com o respeito que a sabedoria de Dona Chica precisa indaguei: "Você, viúva há tanto tempo, nunca arriscou amar de novo? Por que essa dedicação eterna a um só companheiro? Por que viver de lembranças quando poderia ainda ser aquecida por uma companhia concreta?" Foi exatamente aí que Dona Chica renunciou à serenidade antes bem explícita para me dedicar palavras não muito amáveis. 
    "Menina... Como você se chama mesmo?" Respondi: Aline Brandt. "Tudo bem dona Aline Brandt... Acho que você terá que ouvir algumas coisas que julgo importantes. Acreditar em algo mais, depois de um amor tão intenso como o de eu e José, é uma ingenuidade perigosa. O sentimento que nos levou à união matrimonial é, estou certa, muito maior do que aquele descrito no romance Romeu e Julieta". 
    Dona Chica se vê mais feliz do que Romeu... Também mais feliz do que Julieta... Ela não sabe porque um romance tão trágico tenha obtido tamanha notoriedade. Famoso mesmo precisava ser o tempo vivido, em comum, por ela e José... "Eu me entregava de corpo e alma sem a mínima exigência. Ele me reverenciava como se estivesse diante de um altar. Momentos difíceis eram superados pela nossa bateria sempre bem abastecida de carinho e ternura."
    Os sonhos de Francisca, de um casamento perfeito, pelo visto, haviam se concretizado. Aos que pensassem que, na ausência do companheiro José, só lhe restasse tristeza, respondia que fabulosa é a recordação da boa vivência. Triste é não ter uma história de grande amor para contar...
    "Filha... Pena que hoje ninguém tenha muito tempo para ouvir velhas como eu. Contudo: o meu coração bate de um jeito que parece ordenar que não deixe de dar luz a quem anseia pelo caminho que conduz ao amor duradouro... Aquele que jamais será extinto. Mesmo que um se vá o encanto não morre... A felicidade sobrevive na lembrança dos momentos vividos. Amor é uma expressão muito séria. Se existe é eterno. Dispensa segundas ou terceiras edições." (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

    

    
    

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