As compensações do saber

    Anna acordou cedo naquele dia... Estava ansiosa... Mas irradiava felicidade. Depois de um banho demorado se deu ao luxo de comer bolo de chocolate - acompanhado de uma xícara de café. "Hoje posso. É um dia especial."
    Colocou seu melhor vestido... Como adorno somente os brincos que ganhou, dos pais, no dia da formatura. "Não são os mais valiosos mas, com certeza, são os que, para mim, têm maior valor." 
    Os filhos (Carlos e Vitório) chegariam, em poucos minutos, para buscá-la... Se o marido estivesse vivo a acompanharia. "Faria questão de ficar na primeira fila. Charles sempre foi generoso... Supervalorizava minhas virtudes."
       Anna seria homenageada. Ainda não conseguia acreditar que receberia tamanha prova de reconhecimento. Antes de sair de casa, porém, Anna se permitiu voltar no tempo... "Porque existem momentos marcantes capazes de transformar vidas." E Anna desejava recordar o dia em que teve certeza de que nascera para "conquistar o mundo".
    Sessenta anos antes
    Anna é uma menina bastante esperta. Tem sete anos. Mora, em uma casa de três cômodos, com os pais e o irmão mais novo. Seus pais deixaram o sertão havia muito tempo. Foram morar na cidade grande. Almejavam uma vida melhor - longe da seca e da fome. A realidade, contudo, acabou sendo diferente do que sonhavam. As dificuldades continuaram fazendo parte do dia-a-dia da família.  
    A mãe de Anna, Maria, é faxineira. O pai, João, é feirante. A vida não é fácil. "Estude minha filha. A vida de quem não conhece as letras é cheia de privações. O trabalho é árduo e o reconhecimento é pouco."
    Anna frequenta a escolinha da vila. A professora, Joaquina, se desdobra para ensinar com tão poucos recursos. A escola não tem biblioteca. Joaquina faz tudo para compensar esta carência. Conta, para seus pequenos alunos, fábulas e outras histórias que guarda na cabeça. E Anna sonha, acordada, com o dia em que terá o privilégio de manusear um livro de verdade...
    Em um dia 12 de outubro Anna ganhou um presente. O melhor presente que poderia desejar. Sua mãe chegou em casa, depois de mais um dia de faxina, com um embrulho nas mãos. "Filha... O Júnior não queria mais estes livros. A dona Luiza iria colocar fora. Perguntei se poderia ficar com eles. Ela concordou e daí eu os trouxe para você."
    Anna pegou, com bastante cuidado, o embrulho dos braços da mãe... Abriu o pacote solenemente e contemplou seus tesouros... Naquela noite não dormiu. Leu todas as histórias. Soube, depois de horas de leitura, que podia ser quem quisesse... Teve certeza de que, com dedicação e amor no coração, sua vida mudaria. "Posso ser quem eu quiser. Só preciso me esforçar. Quero um final feliz - como o das princesas dos livros que ganhei. Mas, acima de tudo, desejo uma vida feliz. E vou fazer o que estiver ao meu alcance para concretizar este desejo."
    Superação
    A menina Anna, contrariando todas as estatísticas, venceu dezenas de obstáculos... Muitos de seus colegas de classe não tiveram tanta sorte. Alguns perderam a vida para os vícios. Outros não conseguiram vislumbrar algo além da rotina de privações e miséria. Ainda houve os que figuraram nas páginas dos jornais porque optaram pela criminalidade.
    Mas a menina Anna superou a pobreza... Trabalhou e, com muito esforço, se formou professora. Queria "transformar vidas". Sua primeira experiência profissional foi na escolinha da vila. Enfrentou falta de motivação dos alunos... Inexistência de materiais básicos... Evasão escolar em níveis alarmantes. Enfrentou e venceu. Porque Anna guardava, em seu coração, a certeza de que o ser humano nasceu para ser feliz. 
    Atualmente
    A campainha soou... Anna saiu de seu devaneio. Os filhos tinham chegado para buscá-la. Anna estava nervosa. Durante o percurso - da casa até o salão de festas da vila - segurou as mãos de Vitório. A ansiedade era visível. Os olhos, no entanto, brilhavam de emoção.
    Anna, tão acostumada com homenagens e condecorações (resultado de seu trabalho em prol da educação na vila), parecia uma criança. "Não acredito... Não acredito que todos estarão aqui."
    Anna, frágil e de cabelos brancos, chegou ao salão de festas. Na plateia médicos, advogados, professores... E, também, dezenas de moradores da vila. Ao entrar no salão foi efusivamente aplaudida. Com lágrimas nos olhos reconheceu, entre os médicos, advogados, professores, os seus primeiros alunos. "Sim... Estão todos aqui." 
    Neste momento Anna teve certeza de que havia conquistado o mundo. Porque plantara, em cada um dos seus alunos, uma sementinha extremamente fértil e frutífera... Havia garantido, através de incentivo à leitura e orientação, um lugar ao sol para aquelas pessoas... "Sim... Como nos contos e nas outras histórias dos meus livros de menina finais felizes existem... E, o mais importante, fomos feitos para a felicidade constante e permanente. Para a plenitude daquilo que chamamos de realização pessoal."
    Nota da autora: Anna, com seus livros e seu jeito doce, foi responsável pela transformação de muitas vidas. Anna ousou acreditar que, através do amor e da educação, é possível tornar o mundo um lugar melhor. Dedico este texto para todas as "Anna" que existem pelo mundo afora. 
    Para terminar ouso plagiar Antoine de Saint-Exupéry... "Anna era uma criança como tantas outras. Mas lhe deram um livro. E, neste instante, soube que poderia conquistar o mundo." (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

Comentários

Postagens mais visitadas