Papel, palavras e alma

    O ano é 2116... A vida na terra gira em torno da tecnologia. Escola, livro, papel, professor, lápis, boneca, bola, amigo... são palavras não mais utilizadas. Os símbolos substituíram as letras... As informações, inclusive pessoais, são armazenadas em chips... A comunicação é feita, basicamente, através de computadores de bolso. Poucas pessoas ainda lembram de como o mundo era antes da tecnologia se tornar o centro de tudo.
    Cora
    Cora tem seis anos. Recebeu o mesmo nome de sua tataravó. É esperta e bastante curiosa. Conhece letras e números. Por insistência de sua bisavó, Carolina, sabe ler e escrever com perfeição. "Seus pais consideram este tipo de conhecimento dispensável. Não consegui convencê-los do contrário. Mas um dia, quem sabe, você poderá utilizar o que estou lhe ensinando para tornar o mundo um pouco mais aconchegante - como era nos meus tempos de menina", previa sua bisavó.
    Carolina foi, para Cora, uma fonte inesgotável de conhecimento. Através de suas histórias Cora pôde ter uma acentuada visão de como as pessoas viviam muito antes de seu nascimento. Aos olhos de Cora o mundo, na ápoca em que a bisavó Carolina era criança, parecia mais colorido... Mais caloroso... Mais feliz. "Hoje em dia são poucos os amigos de verdade Cora. As pessoas não conversam mais. Parece impossível, para o ser humano da atualidade, deixar de lado, mesmo que por cinco minutos, o mundo virtual. Perdeu-se a vontade de observar o sol e as estrelas... Não se tem mais tempo para cuidar de flores e animais. A vida hoje se resume ao que pode ser guardado dentro de uma máquina e carregado de um lado para outro."
    "Bisavó Carolina... Como era, então, o mundo no seu tempo de criança?"
    "Era muito diferente minha menina... Quando eu era criança ganhei, dos meus pais, uma boneca de pano. Dei a ela o nome de Matilde. Vivemos juntas incontáveis aventuras. Subíamos em árvores. Tomávamos banho de chuva. Li, para Matilde, dezenas de histórias."
    "Histórias do computador bisavó Carolina?"
    "Não minha pequena. A bisavó nunca gostou de computador. Quando eu voltar para casa vou querer que vá e fique um tempo comigo. Poderei, então, lhe apresentar os amigos que fiz quando era uma menina da sua idade. Acho que vocês vão se dar muito bem."
    Carolina, no entanto, não teve a oportunidade de voltar para casa...
    Vozes
    Carolina morava, com seu neto Lourenço, desde antes de Cora nascer. Precisou deixar sua casa, rodeada de árvores e próxima a um rio de águas límpidas, em razão de doença que lhe acarretou dependência de outras pessoas, inclusive, para locomoção. E essa doença se agravava de maneira irremediável. Tanto que, alguns dias depois da conversa que teve com Cora, sobre histórias e amizades de longa data, Carolina faleceu.
    Os pais de Cora, Lourenço e Bibiana, decidiram, depois de passado o período de luto, que era hora de se desfazer dos pertences de Carolina. "Vamos tirar uma semana de folga. Faz mais de dez anos que a casa da vovó está fechada. Deve estar repleta de aranhas e cheirando a mofo. Algumas pessoas do vilarejo chegam a inventar histórias. Dizem que à noite escutam vozes saídas do sótão da casa. São pessoas de imaginação fértil."
    "Podemos ficar na pousada da vila. Cora nem precisa ir. Vamos deixá-la na casa dos meus pais." Esta foi a sugestão de Bibiana ao marido Lourenço.
    Cora, lembrando da conversa que teve com sua bisavó Carolina, contrariou a vontade dos pais e não quis ficar na cidade. "Prometo que serei uma boa menina. Não vou atrapalhá-los. A bisavó me disse que, quando ficasse boa, me levaria até a casa dela. Ela desejava que eu conhecesse o lugar onde passou a maior parte de sua vida."
    Primavera
    Lourenço, Bibiana e Cora chegaram, no final da manhã, ao vilarejo. Depois de um almoço rápido foram até a casa de Carolina. "Você disse que seria uma boa menina. Então fique perto da mamãe ou do papai. Se nos desobedecer não voltará aqui amanhã."
    Cora, contudo, não ouviu sequer uma palavra do aviso de sua mãe. Estava hipnotizada. Seus olhinhos brilhavam diante do casarão, de pedra, que enxergava a sua frente. "Bisavó Carolina foi uma mulher de muita sorte. Nunca antes vi casa tão bonita. Acho que este lugar deve ser o paraíso" - pensou Cora.
   A quantidade de árvores e flores que rodeavam a casa também impressionou Cora. As cores e os aromas da primavera estavam por todos os lados. "As pessoas devem ter esquecido como é bom estar rodeado de flores e árvores. Não lembro de ter visto algo assim tão belo nem vasculhando o computador. Os arranha-céus estão em todos os cantos da cidade. Lugares como este vão acabar desaparecendo" - disse Cora.
   "É verdade minha querida. Eu já não lembrava quão bonita é a propriedade de meus avós. Realmente... Lugares como este estão cada vez mais difíceis de encontrar."
    Lourenço, Bibiana e Cora subiram as escadas de mãos-dadas. Lourenço abriu a porta da frente com bastante dificuldade. "As fechaduras estão enferrujadas. Será difícil abrir, também, as janelas. Mas será necessário abri-las. A energia elétrica fora cortada havia anos. Precisaremos aproveitar a luz do sol para conseguir separar as coisas que levaremos para a cidade."
    Cora, no auge dos seus seis anos de vida, jamais tinha visto móveis como os que ocupavam os cômodos da casa de sua bisavó. "Parecem ter mil anos. São lindos!!!"
    Lourenço e Bibiana se envolveram tanto na inspeção à casa desabitada que não perceberam o afastamento de Cora. A menina, curiosa como sempre, queria ser a primeira a ver tudo o que estava lá dentro. Depois de inspecionar o primeiro andar subiu as escadas em direção à ala onde ficavam os quartos. No final do corredor encontrou uma escada estreita. Galgou os degraus e se deparou com uma porta fechada. Sem qualquer receio abriu e entrou. Viu ali um cômodo repleto de pó. Os móveis, diferentemente dos encontrados em outros cômodos da casa, estavam protegidos por lençóis. "Acho que estas coisas são muito importantes. A bisavó Carolina não iria escondê-las aqui em cima caso não fossem valiosas."
    Cora retirou os lençóis, que cobriam os móveis, com bastante cuidado. "O que são estes objetos guardados, lado a lado, nestas enormes estantes? Devo limpá-los. Estão cheios de pó."
    Amigos
    Munida de um pano, que encontrou dentro de uma gaveta, Cora retirou um dos objetos da prateleira. Depois de limpá-lo percebeu que continha algumas inscrições. Neste momento uma luz tomou conta do sótão. "Muito prazer menina. Eu sou um livro. Chamo-me "O pequeno príncipe". Sou filho de Antoine de Saint-Exupéry. Obrigado por me dar atenção. Faz anos que ninguém conversa comigo... E eu tenho tantas coisas para contar."
    "Um livro? Mas o que é um livro? Nunca ouvi falar de livro."
    "Vou lhe contar o que é um livro. Mas primeiro me diga qual é o seu nome. Sou do tempo em que era importante conhecer as pessoas pelo nome."
    "Chamo-me Cora. Minha bisavó, Carolina, era dona desta casa."
    "Carolina!!! Sinto falta dela. Ela nos fazia companhia. Tinha um zelo especial pela nossa manutenção e, principalmente, estava aberta a ouvir o que tínhamos a dizer. Éramos íntimos amigos... Deixemos, contudo, o saudosismo de lado. Você me fez uma pergunta. E livros jamais deixam uma pessoa sem respostas... Livros são feitos de sentimento e, por este motivo, sustenta-se uma crença de que inclusive têm alma. São recheados de histórias. Através dos livros você pode conhecer todas as partes do mundo e até navegar pelo universo. Livros são, posso lhe garantir, amizades que não decepcionam e duram a vida toda."
    "Acho que entendi. Mas por que as pessoas não falam sobre a existência de livros? Por que vocês caíram no esquecimento?"
    "As pessoas perderam o interesse pelos livros. Não se importam mais com o imaginário... Só que você, Cora, mesmo não sabendo da nossa existência, acredita no poder transformador da imaginação. Por este motivo nos achou e consegue nos ouvir. Preciso voltar para o meu lugar na prateleira. Antes, porém, quero lhe dizer mais uma coisa... Continue acreditando no impossível porque só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos."
    Cora, ainda um pouco confusa, observou "O pequeno príncipe" retornar para a prateleira. Em seguida, contudo, teve sua atenção direcionada para outro livro...
    Mais apresentações    
    "Olá pequena Cora. Prazer em conhecê-la. Chamo-me "Fábulas". Meu pai é Monteiro Lobato. Você não faz ideia da alegria que nós, livros, sentimos ao vê-la se aproximando. Sua bisavó foi uma grande amiga. E, tenho certeza, também poderemos contar com a sua amizade."
    "Gostaria de passar mais tempo aqui com vocês livros. Mas meus pais devem estar preocupados. Terei, em breve, que ir encontrá-los. Antes de partir, contudo, preciso saber se posso ajudá-los de alguma forma..."
    "Existe algo que você pode fazer para que nós, livros, não sejamos definitivamente esquecidos. Leve-nos com você. Leve-nos para a sua casa. Apresente-nos às pessoas que conhece. Assim o mundo será um lugar bem melhor de se viver porque só enriquece quem adquire conhecimentos. A verdadeira riqueza não está no acúmulo de moedas - está no aperfeiçoamento do espírito e da alma. A verdadeira riqueza não é a do bolso é a da cabeça. O mundo carece deste tipo de riqueza minha pequena."
    "Dona "Fábulas" fique tranquila... Prometo que, assim como minha bisavó Carolina, vou cuidar de vocês. Vou levá-los comigo e apresentá-los às pessoas. Acho que assim o mundo terá, enfim, mais pessoas felizes e ricas em conhecimento."
    "Obrigada Cora... Voltarei, para o meu lugar, bem mais tranquila. Já que concordou em nos levar com você teremos, no futuro, muitas chances de diálogo. Seremos grandes amigas."
    Cora auxiliou "Fábulas" a retornar ao seu lugar na prateleira. Em seguida notou a aproximação de outro livro que estava escondido em um canto.
    "Olá Cora!!! Sou a "Bíblia". Você sabia que fui o livro mais vendido do mundo?"
    "Verdade??? E o que lhe fez tão popular?"
    "Minha menina... Fui popular porque as pessoas encontravam, em minhas páginas, um pouco de conforto... Porque busquei ensinar, ao longo dos séculos, que é mais importante "ser" do que "ter"... Porque incentivei a propagação do amor e da generosidade. O repartir o pão. A paz como fonte de duradoura felicidade."
    "Que lindo dona "Bíblia". Eu aprendi, desde muito pequena, a importância de espalhar o amor... De olhar meus semelhantes como irmãos. De contornar todo tipo de violência. Posso fazer alguma coisa para lhe ajudar?"
    "É claro que sim minha pequena... Espalhe amor pelo mundo... Sim... Espalhe amor pelo mundo. As pessoas estão carentes de amor e solidariedade. Ajude-as a saber que são amadas... Que têm valor."
    "Farei isso dona Bíblia. Obrigada por confiar em mim."
    "Acho que você já teve aventuras demais por um dia. Deixarei você descansar. Preciso antes pedir que cumpra sua promessa. Leve-nos com você. Apresente-nos para amigos e conhecidos. Estou certa de que as pessoas estão abertas a ouvir o que temos a dizer. Você tem uma missão minha pequena - espalhar conhecimento hoje praticamente esquecido. Acredito que terá êxito nesta jornada."      
    Sonho
    Lourenço e Bibiana encontraram Cora, com um volume desconhecido nas mãos, deitada em um sofá empoeirado. Parecia dormir profundamente.
    "Nossa pequena deve ter adormecido em razão do cansaço. O dia foi recheado de novidades. Vamos acordá-la e voltar para a pousada. Também estou exausta. Amanhã poderemos retornar."
    Lourenço se aproximou de Cora com cuidado. Tocou seu rosto delicadamente. Não queria que acordasse assustada...
    "Acorde minha filha... Já está na hora de voltarmos para a pousada."
    Cora foi acordando aos poucos... Olhava, com curiosidade, para todos os cantos do sótão. As palavras trocadas, com os livros, ainda ecoavam em sua memória.
    "Papai... Mamãe... Preciso lhes contar um segredo. Vocês sabem o que é isto que estou segurando? É um livro!!! Sim!!! Um livro. Aposto que vocês ainda não tinham visto um livro."
    "Deixe-me dar uma olhada... Está cheios de escritos... A vovó Carolina era uma pessoa de muitos segredos."
    Cora contou para seus pais, em seguida, a conversa que teve com os livros... Falou, inclusive, da promessa que fez para dona "Fábulas". Precisava levar  aquele acervo para a cidade. 
    Lourenço e Bibiana, acreditando tratar-se de um sonho, não deram muita atenção para o relato de Cora. Concordaram, mesmo assim, em transferir os livros para a casa da cidade.
    Cora cumpriu assim sua missão... Apresentou os livros a conhecidos e desconhecidos... Ensinou muitas pessoas a ler... Levou, pelos lugares onde passou, amor e gratidão. A tarefa assumida por Cora não foi fácil. Afinal: a grande maioria das pessoas não estava interessada em "papel velho e sem utilidade". Cora compreendeu este já esperado desinteresse e persistiu. Lutou pelo que acreditava ser correto. Levou conhecimento às multidões. Desta maneira as relações interpessoais começaram a voltar a ter importância. O cumprimento total da missão, no entanto, ainda estava bem distante... Só que a primeira parte da caminhada mostrava bons frutos. Outros, ainda mais preciosos, certamente estariam pela frente... 


Notas da autora: 
- Este conto terá continuidade. Impossível falar dos efeitos de tantos livros em um só capítulo. 
- Os trechos em itálico foram extraídos dos livros "O pequeno príncipe" e Fábulas.
(Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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