Papel, palavras e alma - parte 2

    O ano é 2136... A vida na terra submete-se cada vez mais a tecnologia... Quase tudo pode ser obtido com um simples toque na tela do celular. A comunicação interpessoal se dá, basicamente, através de mensagens de texto. Mas estas regras, como tantas outras, têm exceções...
    Cora
    Cora agora não é mais uma menininha. Tem vinte e seis anos. É uma bela jovem. A performance física, porém, não é o que influi para Cora ter centenas de admiradores. A jovem tem coração generoso. Está sempre disposta a auxiliar quem a procura. Trabalha em uma multinacional que desenvolve softwares. Em suas horas de folga é responsável por uma das poucas bibliotecas que se sustentaram até aquela época. A biblioteca, de caráter comunitário, funciona em uma ampla sala da casa onde a jovem reside.
    Fernando
    Fernando tem trinta e cinco anos. Há mais de três décadas reside nos Estados Unidos. É um dos diretores da multinacional em que Cora trabalha. Administra os negócios da família com competência e muito esforço. Foi designado, por seu pai John, para salvar a filial brasileira da empresa...
    - Não teríamos outra opção? - quis saber Fernando.
    - A decisão já está tomada. Você é um dos mais competentes executivos da empresa. Se não conseguir aumentar os lucros da filial do Brasil a alternativa será fechá-la. - declarou John.
   Dias depois desta conversa Fernando desembarcou, bastante contrariado, em um aeroporto do Brasil. Os desafios, porém, seriam bem maiores do que imaginava...
    Desafios
    Cora estava apreensiva... "Será que Fernando será mais flexível do que o administrador anterior?" Esperava que sim... "O primeiro passo para alcançar bons resultados é trocar ideias... Falta diálogo nesta empresa. Aliás: falta diálogo no mundo."
    Fernando chegara a sua sala, havia poucos minutos, quando ouviu um toque leve na porta... "Quem será?" Ao abrir a porta se deparou com uma jovem, de feições suaves, mas aparentemente bem determinada...
    - Em que posso ajudar-lhe? - perguntou Fernando.
    - Bom dia senhor Fernando. Meu nome é Cora. Trabalho no departamento de recursos humanos. Precisamos conversar. Tenho algumas ideias que acredito serem de grande ajuda para melhorar os resultados da empresa. - falou a jovem.
    - Bastaria ter enviado uma mensagem. Costumo respondê-las rapidamente. - ponderou Fernando.
    - Este é o problema... Tudo nesta empresa - como em tantas outras espalhadas pelo mundo - é "resolvido" através de meios eletrônicos. Não existe mais o diálogo. Pessoas, de todas as classes, estão esquecendo a importância de conversar... - observou Cora.
    - Nossa empresa tem mais de trinta anos... Sempre obtivemos excelentes resultados com este tipo de procedimento. Não vejo razão para mudar. - declarou Fernando. E prosseguiu... - Agora, se me permite, preciso analisar alguns gráficos. Sugiro que volte ao trabalho. Porque se não melhorarmos os resultados, em breve, não haverá mais trabalho nesta empresa para você.
    Cora não se deixou abater com as palavras de Fernando:
    - Desculpe a impertinência mas não costumo desistir com facilidade. Não será sob pressão que os resultados irão melhorar. Precisamos trocar ideias... Dialogar... Um amigo querido falou, há muitos anos, que "em tempos de embustes universais dizer a verdade se torna um ato revolucionário" (George Orwell)... Pode me chamar de revolucionária... Pode dizer que estes assuntos não são de minha responsabilidade... Estou sendo, contudo, sincera. Agora, se me der licença, vou voltar ao "modo automático".
    Fernando ficou desconcertado com a audácia da moça... "Quem ela pensa que é para invadir a minha sala? Para me dizer como devo proceder? Este tipo de atitude não será mais tolerada."
    Dedicação
    Depois do final do expediente Cora foi para casa. A biblioteca comunitária precisava ser aberta. Após muitos anos de esforço centenas de pessoas costumavam frequentá-la. E, para sua felicidade, Cora constatou que um jovem já a aguardava...
    - Boa noite João... Não esperava vê-lo por aqui hoje. - observou Cora.
    - Boa noite senhorita Cora. Os livros que me emprestou, semana passada, foram de grande utilidade. Gostaria de saber se posso pegar mais alguns... - quis saber João.
    - É claro... O objetivo deste espaço é compartilhar conhecimento... Um amigo falou, muito tempo atrás, que "a biblioteca é o templo do saber - e este tem libertado mais pessoas do que todas as guerras da história" (Carl Rowan)... Bisavó Carolina, onde quer que se encontre, deve estar muito feliz com a quantidade de pessoas que tem obtido orientação através dos livros. - ressaltou Cora.
    Depois de algumas horas dedicadas ao serviço na biblioteca Cora se recolheu. Precisava descobrir um meio de fazer Fernando (o novo chefe) ouvi-la. "Acho que vou utilizar meios mais drásticos."
    Quando Fernando chegou à empresa, no dia seguinte, encontrou, sobre sua mesa, um bilhete... "Senhor Fernando... Um amigo falou, anos atrás, que "se quiser ir rápido vá sozinho. Mas se quiser ir longe vá em grupo (Provérbio Africano). Acho que não seria uma total perda de tempo ouvir o que tenho a dizer. Atenciosamente Cora."
    Fernando passou alguns dias pensando nestas palavras de Cora. "Sim... Ela é bastante audaciosa. Porém: acho que nada perco em ouvir o que tem a dizer." No final de uma tarde fria de outono Fernando pediu que Cora fosse a sua sala. 
    - Senhorita. Decidi ouvir as suas sugestões. Não temos muito tempo. Então seja bastante objetiva. - recomendou Fernando.
    -  Serei breve... Temos profissionais muito competentes na empresa. Eles só fazem, no entanto, o que lhes é atribuído. Não sentem necessidade de criar... Não fazem questão de ir além... Precisamos motivá-los. A motivação só virá, acredito, quando estes profissionais souberem que suas ideias serão, pelo menos, analisadas. Precisamos, por este motivo, incentivar o diálogo. - argumentou Cora.
    - E a senhorita poderia me dizer onde foi que aprendeu isso? Diálogo é algo que, há muito tempo, se tornou obsoleto no mundo empresarial. Nem em casa as pessoas costumam utilizar este recurso. Afinal: os meios tecnológicos têm se mostrado bem eficientes. Esta nossa conversa, por exemplo, já está me causando certa inquietação. - contra-argumentou Fernando.
    - O senhor já ouviu falar em livros? Acho que não. Porque, se ao menos tivesse conhecimento remoto da existência de livros, não diria coisa tão absurda. Posso, entretanto, apresentá-lo a alguns deles. Quem sabe eles consigam mudar este seu pensamento. Agora, se me der licença, vou me retirar. Porque a sua inquietação parece ter me contagiado. - frisou Cora.
    Fernando ficou na empresa muito além do horário de expediente. As palavras de Cora martelavam sua cabeça. "Acho que darei chance para me provar essa teoria absurda... A empresa, de qualquer forma, será fechada nos próximos meses. Os resultados não estão melhorando..."
    Novos rumos
    Cora, após o consentimento de Fernando, começou a colocar suas ideias em prática... Todos os dias, no início do expediente, reunia os chefes de departamento para conversar... Em princípio houve muita desconfiança... Aos poucos, entretanto, boas sugestões foram aparecendo.
    Fernando estava sempre presente nas reuniões... Quase não falava. Tinha, contudo, paciência para ouvir. E, além disso, mostrava-se aberto para, após análise das conversações, promover alterações sugeridas pela equipe. Depois de alguns meses de vivência do diálogo e, automaticamente mudanças de comportamento, bons resultados foram aparecendo...
    - Cora... Não tinha ideia de como podemos crescer - pessoal e profissionalmente - através de um bom intercâmbio... Obrigado por me mostrar o quanto trabalhar em "modo automático" é prejudicial. Os talentos que temos estavam na iminência de se perderem... - reconheceu Fernando.
   - Eu só estava fazendo a minha parte... Amo o meu trabalho. Não poderia deixar a empresa sucumbir sem, pelo menos, fazer o que estivesse ao meu alcance. Minha família, sob o olhar atento e amoroso da bisavó Carolina, sempre cultivou o diálogo. Sempre resolvemos nossos problemas conversando - olhos nos olhos... Só queria passar este tipo de atitude adiante. - revelou Cora.
    - Soube que você tem, em sua casa, o que chama de biblioteca... Ainda não tive a oportunidade de um contato com livros. Gostaria de conhecê-los... Você prometeu me ajudar nisso. Muitos funcionários mencionam, nas reuniões, que são extremamente gratos a você pela condução ao hábito da leitura... - lembrou Fernando.
    - Pode me acompanhar hoje se quiser... Ofereço-lhe, além de livros, uma xícara de café. - prometeu Cora aparentemente satisfeita.
    Naquele final de tarde teve início uma bonita amizade. Respeito já existia. Cora e Fernando perderam-se em meio aos livros... Conversaram... E, mesmo nos momentos de silêncio, o ambiente parecia ter um som suave e acolhedor. Vozes sábias partiam de folhas de papel. Falar era dispensável em meio a tantas histórias que podiam ser aprendidas em silêncio. 
    Livros
    Fernando foi apresentado, por Cora, a um novo mundo... Aliás: conheceu, através dos livros, centenas de mundos... Todos os dias, depois do expediente, passou a acompanhar Cora na biblioteca... Fez amizade com Tolkien, Agatha Christie, Erico Verissimo, Machado de Assis, Mario Quintana, Emily Bronte, Jane Auten... O que tornava esses momentos ainda mais interessantes era a companhia de Cora. A jovem, por sua vez, passou a sentir necessidade de conversar - ou simplesmente aproveitar os momentos de silêncio - com Fernando. Da amizade surgiu, em tempo relativamente curto, um sentimento sublime... Profundo... Indescritível... Um sentimento de amor.
    O relacionamento de Fernando e Cora, notoriamente, evoluiu para além de amizade e companheirismo... Não obstante a paixão por livros e pelo trabalho tinham centenas de coisas em comum - e milhares de diferenças... E, por incrível que possa parecer, o encanto se fortaleceu com um bilhete de Fernando... "Querida Cora... Você tornou-se, com o passar dos dias, indispensável em minha vida... Quero, ao seu lado, enfrentar todos os obstáculos... Concretizar objetivos... Compartilhar amor e, inclusive, conhecimento. Você é uma mulher de espírito elevado... Cativante... Não se deixa abater diante das dificuldades... Não se afasta dos seus princípios. Desejo tê-la, ao meu lado, em todos os momentos da vida... Um dos amigos que temos em comum disse, certa vez, que "tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." (Antoine de Saint-Exupéry). E você me cativou desde o primeiro olhar. Com amor do seu Fernando..." (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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