As artimanhas do coração

    Mais um outono de solidão. A cidade parece, aos olhos de Eugênia, abandonada. Calçadas repletas de folhas secas. Pessoas apressadas. O cinza é a cor predominante no céu. A vontade é permanecer em casa. Mas a geladeira está vazia. Quase tão vazia quanto a casa número 301 da Av. das Nações. 
    Eugênia sempre apreciou o outono. Só que, depois da viuvez, prefere os dias quentes de verão. Dias em que a saudade parece oferecer pequena trégua ao seu coração repleto de amor...

    Eugênia e Leopoldo - trinta e seis anos antes...
    Eugênia tem dezenove anos. É uma jovem de feições suaves. Nem de longe tão bonita quanto suas amigas Lúcia e Aurélia. Mas, em razão da doçura que transparece em seu olhar, exerce grande fascínio. É professora na única escolinha da vila onde mora. Filha de fazendeiros jamais pensou sair do interior. A vida pacata lhe agrada sobremaneira. O destino, contudo, gosta de pregar peças. Nem sempre se segue o caminho desejado. As reviravoltas acontecem quando menos se espera.
    Leopoldo é um belo jovem de vinte e três anos. Faz residência médica em um prestigiado hospital da capital. É apaixonado por cavalos. Levado por esta paixão acaba optando por passar alguns dias na propriedade dos avós maternos - situada em uma pacata vila do interior. "Estou em momento decisivo... Preciso de sossego para fortalecer as energias... Para decidir se aceito a bolsa de estudos nos Estados Unidos ou se faço especialização no Brasil" - justificou Leopoldo, sua necessidade de viajar para o interior, em conversa com os pais.
    Amor a primeira vista
    Eugênia costuma encontrar as amigas, Lúcia e Aurélia, em sextas-feiras, na única padaria do vilarejo. A padaria, com algumas mesas e não mais do que duas dúzias de cadeiras, é ponto de encontro de pessoas de todas as idades.
    - Olá Lúcia. A Aurélia não veio com você? - questionou Eugênia.
    - A Aurélia está resfriada. Mamãe não deixou que saísse de casa - informou Lúcia.
    - Diga para Aurélia que irei visitá-la amanhã. E o Guilherme ainda não chegou? - quis saber Eugênia.
    - Ele vai se atrasar um pouco. Teve um pequeno compromisso na fazenda dos avós - contou Lúcia.
    - Então hoje serei somente eu a testemunhar o clima de romance entre você e Guilherme - brincou Eugênia.
    - É aí que você se engana minha querida amiga. O Guilherme virá acompanhado de um primo que reside na capital. Eu ainda não o conheço. A avó do Guilherme, dona Eulália, me contou que é um rapaz muito bonito e, em breve, montará consultório médico - revelou Lúcia.
    Eugênia e Lúcia dedicaram-se então a conversa sobre amenidades... Trabalho... Clima... E, também, sobre os preparativos do noivado de Guilherme e Lúcia. Depois de alguns minutos foram interrompidas, gentilmente, por Guilherme...
    - Senhoritas... Que bom vê-las assim tão animadas. Desculpe atrapalhar a conversa mas deixem-me apresentá-las ao meu primo Leopoldo - anunciou Guilherme.
    Ao virar-se para cumprimentar os recém-chegados Eugênia foi tomada por sensação indescritível. Ao lado de Guilherme estava um jovem, de cabelos negros e olhos tão verdes quanto uma esmeralda, que lhe sorria abertamente. As palavras pareciam ter desaparecido. Ela demorou alguns segundos para apertar a mão que lhe era estendida.
    Ao entrar na pequena padaria a atenção de Leopoldo foi direcionada a um ser angelical, de feições incrivelmente suaves, que conversava animadamente com uma jovem de cabelos negros. Quando constatou que Guilherme caminhava em direção às duas torceu para que Lúcia fosse a dona das madeixas escuras. E não foi capaz de conter um imenso sorriso ao constatar que a noiva de seu primo não era a moça de cabelos claros...
    - É um prazer conhecê-las senhoritas - cumprimentou Leopoldo.
    - Planeja ficar quanto tempo por aqui? - quis saber Lúcia após os cumprimentos de praxe.
    - Gostaria de ficar o mês todo. Tenho, entretanto, alguns compromissos urgentes na capital. Talvez me permita a umas duas semanas de descanso - contou Leopoldo.
    - Que pena!!! Guilherme e eu marcamos o noivado para o final do mês. Será que conseguiria mais uma brecha na sua agenda para se fazer presente? - perguntou Lúcia.
    - Não posso prometer que estarei aqui. Afinal: decisões importantes precisam ser tomadas. Ainda não optei entre fazer especialização nos Estados Unidos ou no Brasil. Concluirei a residência somente no final do ano. Se optar por estudar no exterior, contudo, estarei sobremaneira envolvido com questões burocráticas. Mas farei o possível para presenciar este momento tão importante da vida de vocês - revelou Leopoldo.
    A conversa, bastante agradável, estendeu-se por mais ou menos uma hora. O assunto mais frequente foi o noivado de Guilherme e Lúcia. Leopoldo e Eugênia mostraram-se excelentes ouvintes. 
    - Estou adorando a companhia de vocês. Já passou da hora, entretanto, de voltar para casa. Tenho alguns trabalhos de alunos para corrigir - desculpou-se, após levantar da cadeira, Eugênia.
    - Eu a acompanho até sua casa - sugeriu Leopoldo.
    - Não há necessidade. Todos os moradores da vila me conhecem... Zelam pelo meu bem estar. Afinal: sou a professorinha da escola... E, mesmo se estivéssemos entre estranhos, a propriedade dos meus pais fica aqui perto - orientou Eugênia.
    - Faço questão de acompanhá-la. Não quero atrapalhar o casalzinho apaixonado - insistiu Leopoldo.
    Leopoldo e Eugênia percorreram os poucos metros que separavam a padaria da entrada da fazenda em um silêncio confortável... O boa noite foi um terno beijo no rosto.
    - Podemos nos ver amanhã? - quis saber Leopoldo.
    - Amanhã passarei a tarde na casa de Lúcia e Aurélia... Aurélia está resfriada e impedida, pela mãe, de sair de casa - observou Eugênia.
    - Posso, então, lhe oferecer um pedaço de torta e uma xícara de café? O que acha de nos encontrarmos, à tardinha, na padaria? Prometo não tomar muito do seu tempo. Hoje fomos mais espectadores... Quase não conversamos. Gostaria de conhecê-la um pouco melhor - revelou Leopoldo.
    - Aceito o convite. Chego, à padaria, às 17 horas - confirmou Eugênia.
    - Estarei lhe esperando. Até amanhã - despediu-se Leopoldo.


    Doce encontro
    Eugênia tentou corrigir  os trabalhos dos alunos. Precisava entregar os resultados na segunda-feira. Seus pensamentos, contudo, acabavam se direcionando, com frequência assustadora, ao jovem Leopoldo. "Não consigo me concentrar. É melhor deixar esta tarefa para domingo. É... Acho que domingo será um bom dia para corrigir trabalhos e atribuir notas" - concluiu.
    Leopoldo, por sua vez, resolveu dedicar algumas horas, antes de ir para a cama, aos estábulos... Escovar os cavalos era tarefa que costumava acalmá-lo. Só que nessa noite nada parecia capaz de lhe tirar do pensamento o doce sorriso de Eugênia. "Este não é o momento certo para o coração se impor à razão" - tentava se convencer, sem sucesso, Leopoldo. 
    A tarde de sábado parecia se arrastar. Eugênia sempre apreciou a companhia de Lúcia e Aurélia. Desta vez, no entanto, não conseguia prestar atenção à conversa. Estava ansiosa. Queria encontrar Leopoldo. "Sou uma sonhadora. Nem sei porque fico criando expectativas. Leopoldo só me convidou para sair por gentileza. Nada mais. Em breve voltará para a capital. Quem sabe até decida estudar nos Estados Unidos. As chaces de um reencontro, depois que ele for embora, acho que são quase inexistentes" - pensava Eugênia enquanto Lúcia e Aurélia falavam, animadamente, sobre os preparativos do noivado.
    Eugênia decidiu que era melhor ir logo para a padaria... Talvez conseguisse colocar os pensamentos em ordem. Ficou imensamente surpresa ao constatar que Leopoldo, meia hora antes do horário combinado, já a esperava... Na padaria ninguém mais estava além do jovem e da atendente. O grande movimento de costume começava mais tarde.
    - Tinha esperança de que pudesse vir antes das 17 horas. Minha intuição não costuma falhar - brincou Leopoldo ao avistar Eugênia se aproximando.
    - A visita, à casa de Lúcia e Aurélia, foi breve. Pensei que esperá-lo aqui seria mais coerente do que ir para casa e voltar no horário combinado - justificou-se, com as faces rosadas, Eugênia.
    A conversa entre Leopoldo e Eugênia, regada a café e torta de chocolate, fluía com perfeição. Leopoldo contou que queria se especializar em pediatria... Que sua estação preferida era o outono... Que amava cavalos... Disse que uma macarronada bem caprichada, acompanhada de bom vinho, era capaz de lhe fazer adiar compromissos. Eugênia, por sua vez, falou sobre a infância na fazenda e a rotina diária na escola. Confessou ser macarronada seu prato preferido.
    - Exceto pelo vinho - "pois não costumo ingerir bebida alcoólica" - e por gostar da vida pacata no interior vejo que temos bastante em comum - constatou Eugênia.  
    - Quem diria que o médico da cidade grande e a professorinha do interior teriam gostos tão parecidos - observou Leopoldo.
    O fascínio, que nasceu já no primeiro encontro de Leopoldo e Eugênia, foi aumentando com o passar dos dias. O tempo, implacável, também fazia aproximar a hora do retorno de Leopoldo à capital.
    Sentimento decisivo
    É o destino, como sempre, a pregar as suas peças. Eugênia e Leopoldo, de uma hora para outra, viram zerar os seus planos. Tudo que, até dias atrás tinha fundamento, agora parecia ter perdido espaço. O que importava mesmo era aquele sentimento forte que sustentava o desejo de se manterem próximos. 
    Leopoldo retornou à capital... Eugênia permaneceu na sua rotina interiorana. Um afastamento temporário que, para surpresa dos dois, chegava a doer. A afinidade que criaram era algo celestial... Descritível só numa conversa entre eles. Felizmente, dez dias depois, haveria o noivado de Guilherme e Lúcia. Leopoldo, como cogitara, provavelmente estaria presente. Voltaria ao vilarejo de Eugênia talvez por uma sentença estabelecida pelo universo. Impossível o mundo prosseguir sem, pelo menos, um toque de mão de dois seres que, embora ainda sem a real ciência, se amavam desde o primeiro olhar.
    Leopoldo se fez presente ao cerimonial de noivado. Eugênia o identificou em meio a duas centenas de pessoas. O coração era a sua bússola. Não precisava de outro instrumento. Era preciso apenas olhar para onde indicavam os seus sentimentos. 
    - Olá Leopoldo! Estou feliz por vê-lo. Confesso que sem você esta festa não teria tanta graça. Meus amigos Guilherme e Lúcia são privilegiados por terem a dedicação de pessoas como você. E não posso lhe furtar a declaração de que está ainda mais encantador. É mais lindo do que o retrato que deixou já no primeiro encontro gravado na minha mente e no meu coração - disse, até em forma de declamação, a jovem Eugênia.
    - Poxa!!! Eu vim cheio de boas expectativas. O que você me dá supera o melhor que eu pudesse esperar. Na verdade, lhe confesso, o noivado de Guilherme e Lúcia é apenas um subterfúgio que encontrei para revê-la. A felicidade desses dois amigos é preciosa e merece ser prestigiada. Eu sei disso. Não obstante reencontrar você se tornou algo vital para mim. Fique sabendo: estou aqui só por você - admitiu Leopoldo.
    Essas palavras trocadas geraram, nos corações de Leopoldo e Eugênia, uma chama implacável de paixão. Um amor digno dos mais renomados enfoques literários. De mãos dadas os dois jovens viveram, a partir dali, três dias de intensa alegria. A ideia de mais um afastamento se tornou inadmissível. Obrigou-os a um acordo. 
    Leopoldo declarou que, por amor a Eugênia, dedicaria as suas aptidões profissionais ao vilarejo. Eugênia achou que isso seria muito pouco para o potencial do seu amado. Sugeriu, então, que ele permanecesse na capital, onde tinha condições de galgar a posição que merecia na área de medicina. 
    - Eu, como professora, só terei a ganhar em um lugar mais promissor do que este vilarejo. Apesar do carinho que dedico a esta pequena comunidade tenho ciência de que só em um lugar maior alguém pode colocar em prática os seus elásticos conhecimentos. Meus amigos... Minha terra natal... Todos vão aprovar a minha decisão. Eu quero acompanhá-lo na cidade grande - decidiu Eugênia.
    Leopoldo suspirou sem medo de ser feliz. "É só o que eu esperava ouvir de você. Se você não fosse eu viria. A sua disposição de ir é uma prova de amor que vai além das minhas esperanças. Fiquemos, portanto, na capital. Os passos seguintes o universo nos indicará. Selemos este acordo com um abraço." (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

Nota da autora: Este é o primeiro capítulo de um conto que deverá se estender bastante. Espero que você aprecie este início porque se trata de uma história recheada de bons ingredientes. O amor de Leopoldo e Eugênia tem muito a nos alegrar.

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