As artimanhas do coração - parte 6

    Eugênia, solitária e sem uma ocupação profissional, depois da morte de Leopoldo passou a achar sua casa espaçosa demais. Parecia que tudo havia misteriosamente crescido... Cozinha, sala, biblioteca, quartos, banheiros... Era penoso ver ambientes, outrora bem movimentados, agora totalmente vazios. Nada, além dela, significava vida em todo aquele colossal espaço. 
    Na verdade Eugênia estava, com toda razão, vivendo um período de insatisfação. Sentia-se carente e tinha uma persistente sensação de arrependimento. Negara-se a anotar endereço, telefone e outros dados que lhe haviam sido fornecidos pelo artesão Francisco, na despedida, depois da conversa que tiveram na padaria. O homem havia insistido. Mas ela, naquele momento, tinha certeza de que nunca mais iria querer vê-lo. 
    "O que é este sentimento de vazio? Nunca me vi com algo semelhante. É como se me faltasse água. Como se me faltasse alimento. Como se me faltasse o ar. Estaria eu desejando ardorosamente uma companhia? Estaria eu querendo mais um tempo de bate-papo com o homem da bicicleta?" Esse pensamento interrogatório a fez empalidecer. Concluiu, assustada, que sentia uma necessidade orgânica e espiritual de rever o artesão Francisco. 
    Atônita, frente aos próprios pensamentos, Eugênia correu para a cozinha preparar um café. Ela costumava dizer que pensava melhor depois de uma xícara de café. Pensou... É... Pensou de forma intensa... "Esta casa vazia está me deixando louca. Imagine eu ficar impressionada com o primeiro sujeito que me atropela na rua. Fiz muito bem quando me neguei a anotar seus pontos de localização. Nossa!!! Leopoldo, pelo amor de Deus, me perdoe por esses loucos raciocínios. Você foi o único. É o único a merecer espaço no meu coração."
    Páginas de transformação
    Convicta de que, aos cinquenta e cinco anos de idade, só podia almejar uma vida tranquila com os poucos membros da família, Eugênia decidiu que negar-se-ia até a uma leve lembrança de Francisco. "Não estou mais em idade de me apaixonar. Eu devo estar influenciada pela gentileza daquele ciclista porque não tenho experimentado muitas demonstrações de carinho desde que perdi meu marido. Pronto!!! Ponto final. Não se fala, aliás não se pensa mais, em Francisco nesta casa."  
    Ingênua ilusão da solitária Eugênia. A semente fértil do amor ainda se mantinha viva em seu coração. Ela, porém, não tinha coragem de admitir que um dia poderia vir a cultivar novamente esse sentimento. Quis o ritmo de vida, no entanto, que ao sair à rua, na banca onde costumava comprar jornais e revistas, só enxergasse a imagem do artesão Francisco Perez. "Minha loucura deve ter aumentado. Eu não posso estar vendo, em capas de jornais e revistas, a fotografia daquele desastrado ciclista. Meu Deus!!! Será que tenho que ir ao psiquiatra?"
    O atendente da banca, com muita delicadeza, conseguiu despertá-la. Aliás: retirá-la daquele angustiante jogo de pensamentos. 
    - Senhora! Eu sei os volumes que costuma levar. Hoje, no entanto, lhe sugiro que não se recuse a pegar as revistas e os jornais que estampam, em capa, informações sobre o mais famoso artesão do nosso estado. Ele acaba de receber os principais prêmios que são conferidos a artistas dessa área. Desde as primeiras horas da manhã as pessoas nos telefonam pedindo reserva de exemplares. Como a senhora é cliente fiel eu lhe consigo um exemplar de cada publicação.
    As delicadas explanações do moço da banca eliminaram as dúvidas de Eugênia. Ela teve então a certeza de que as fotografias de capa não eram fruto de alucinação. Eram registros de uma real competência. O ciclista que a atropelara, na verdade, era uma celebridade no mundo das artes. Em casa, ao folhear jornais e revistas colhidos na banca, pôde saber o quanto o seu atropelador era importante e famoso. 
    A sofisticada senhora Eugênia se viu, de repente, roendo as unhas. Havia, no mínimo, sido muito deselegante ao não anotar telefone e endereço que Francisco insistentemente lhe fornecera. Nas reportagens de jornais e revistas o artesão aparecia cercado de celebridades nacionais e internacionais. Era o nome do momento. Todos queriam ser fotografados ao lado dele. Eugênia foi tomada por um sentimento de frustração. Se tivesse acatado a insistência de Francisco certamente estaria presente nesse importante momento dele. Era, contudo, uma estúpida que só conseguia enxergar a si mesma. 
    Admissão de sentimento
    Eugênia notou, com admiração, que apesar do assédio do público Francisco não se deixava dominar pela vaidade. Nas entrevistas concedidas pouco falava de sua arte. Contava, isto sim, maravilhas sobre o intenso amor vivido com a sua mulher, Elza, que acabou gerando uma família relativamente numerosa: filhos, genros, noras, netos... 
   Eugênia, que decidira recusar toda e qualquer proposta afetiva a partir da morte do marido Leopoldo, experimentou um sentimento novo... "Estaria eu com ciúme dessa mulher tão amada (Elza)? Estaria eu colocando Leopoldo em um segundo plano para dar lugar a alguma espécie de paixão não conhecida? Isso seria um pecado. Francisco não pode ser mais do que um sujeito que me atropelou na ciclovia. E pronto!"
    Revistas e jornais ficaram espalhadas no sofá. Eugênia, depois de um leve jantar, foi para a cama. Demorou a dormir. Demorou muito mais do que de costume. O travesseiro ao seu lado, se ocupado pelo desejo latente no coração, teria uma presença masculina. E não mais seria a de Leopoldo. Este amor lhe havia sido furtado por uma morte repentina. O travesseiro, agora, era, não podia mais negar, de um homem grisalho, bonito, forte, de olhos vivazes, que se chamava Francisco.
    Triste destino daquele calado travesseiro. "Francisco!!! Isto é um sonho. Uma conclusão tardia. Precisava ter valorizado este homem que, desde logo, se mostrou tão gentil... Tão inclinado a me fazer companhia. Preciso reavaliar os meus pensamentos. Preciso reconsiderar as minhas atitudes."
    Inquieta Eugênia não conseguiu ficar na cama. Foi para a sala, ligou a televisão e deu mais uma folheada nas revistas e nos jornais. Ficou estupefata ao ler, em um trecho de entrevista de Francisco, esta declaração: "Meu caro jornalista... Você me indaga sobre uma nova paixão... Você me pergunta sobre um alguém para o lugar de Elza... Eu posso lhe dizer sem medo de pecado que vi cruzar em meus caminhos uma mulher que fez o meu coração quase sair do peito. Nem sequer lembro seu nome. Só sei que ela apareceu em um momento inadequado. Ou seria em um momento adequado. Não fosse esse atropelamento sem grandes consequências eu não a conheceria. É!!! Não fosse esse episódio aparentemente desagradável me seria ainda desconhecida aquela que talvez seja capaz de reavivar a minha capacidade de sentir paixão."
    Apesar de sua notória modéstia Eugênia não pôde deixar de se sentir homenageada. Francisco estava, nas entrevistas, se referindo ao encontro desastroso que teve com ela. Estava confessando um amor/paixão que, tudo fazia crer, coincidia com as suas mais recentes sensações. Era mesmo uma sentença... "Tenho que admitir. Esse homem me transformou por dentro. Preciso de mais alguns minutos de conversa com ele. A questão é que não tenho argumento algum para procurá-lo já que recusei a anotação de informações que insistentemente queria me dar."
    Pode frutificar extremo amor de um atropelamento em ciclovia? No caso de Eugênia e Francisco pode. Eugênia fez uma análise dos acontecimentos e concluiu: "Os gênios da arte, os gênios da literatura, os gênios da escultura... Esses gênios são seres incomuns... Por isso nos surpreendem através do que produzem. É normal que nos choquem também na expressão dos sentimentos. Eu sou uma possível paixão de Francisco? Por que recusar? É o seu senso artístico que faz ver em mim alguém estimável... Que faz ver em mim o amor que diz procurar. Cabe a mim fazer com que esse amor prospere muito além do cenário artístico-cultural."
    Observação da autora: É bom constatar que todos os conflitos de consciência de Eugênia estão eliminados. Agora ela só quer reencontrar Francisco. Nem que seja em mais um atropelamento na ciclovia. Peço-lhes que acompanhem os próximos capítulos. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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