Paraíso não identificado

   
    Gabriel e Luisa são irmãos. Ele tem oito anos. Ela seis. Frequentam a mesma escola. Saem da cama, todos os dias, às seis e pouco da manhã, movidos pelo som do despertador. A vontade que eles têm é de quebrar aquela maquinazinha importuna que não os deixa dormir mais um pouco. Isso, porém, de nada adiantaria. Se o despertador não funcionar a mamãe ou o papai virão até o quarto para substituí-lo. Isto é: acordar os dois filhotes para irem ao encontro dos compromissos do dia.
    O tempo é implacável. Tudo deve acontecer rapidamente. Gabriel e Luisa vivem uma rotina muito exigente. Saem debaixo dos cobertores e, antes de chegarem à cozinha para o café, têm que ficar perfeitamente alinhados. Peças de roupa e calçados que combinam. Cabelos bem penteados. Bloqueador solar principalmente no rosto. Uma essência agradável ao olfato. Enfim... Papai e mamãe exigem extremo capricho. E o mundo também.
    Quando Gabriel e Luisa chegam à cozinha só encontram a mamãe - envolvida, é claro, no preparo da mesa para a primeira refeição do dia. É a primeira refeição das crianças. Papai tomou o seu café bem antes e há muito já está no trabalho. Tem o costume de sair cedo de casa para evitar os momentos em que o trânsito está mais complicado. Não há muito tempo para esse desjejum do menino e da menina. Os dois têm que estar na escola às 7h45min e o veículo que os leva costuma passar às sete.
    Em sala de aula Gabriel e Luisa dedicam-se ao máximo por um bom aproveitamento do que lhes transmitem os professores. Não poucas vezes recebem tarefas para cumprirem fora do horário escolar. Em casa... Em bibliotecas... Em museus... Os dias, para eles, precisavam ter mais horas. Isto porque, junto com os compromissos da escola convencional, estão inúmeros outros: aula de inglês, aula de espanhol, aula de esporte, aula de arte marcial, aula de teatro/dança, aula de música, aula de informática, aula de etiqueta social...
    Gabriel e Luisa, segundo a ótica dominante, nada fazem de fenomenal. Apenas percorrem caminhos já vastamente conhecidos por seus pais. Três décadas e pouco atrás eram papai e mamãe os envolvidos nesses "pequenos" compromissos. Não há, então, porque reclamar. A vida, concluem o menino e a menina, é assim para todos. Papai e mamãe, por exemplo, não mais vão a escola/aulas. Mas, além dos afazeres do lar, envolvem-se em colossais tarefas no cenário das profissões e, também, na participação social.
    O tempo é escasso demais para a família. Férias são curtas e nem sempre ocorrem quando desejadas. O trabalho está em primeiro plano. Gabriel e Luisa, como seus pais, já não sabem se os enormes compromissos do dia-a-dia são uma escolha que lhes agrada ou algo que não abandonam por medo de uma quebra de sequência histórica. E nesse círculo de exigências vão se escravizando - sem, pelo menos, experimentarem se no lugar dessa realidade atribulada pode existir um pouco de paraíso.
    Gabriel e Luisa têm ciência de que a linha de procedimento dos seus pais é ditada pelos exemplos deixados por seus avós. Isto é: os pais dos seus pais que, sabidamente, eram pessoas sobremaneira compromissadas. Quer dizer... A corrente de exigências quase além das forças vem de bem antigamente. Talvez dos bisavós dos seus bisavós.
    É bom? É ruim? Estas são as questões. Só que Gabriel e Luisa já decidiram que não serão quem romperá esta tradição. Trabalho, trabalho, trabalho... Múltiplos afazeres. Quase cruel rotina. Esta é a cultura que o menino e a menina certamente não terão coragem de repudiar mesmo que impulsionados a buscarem um pedaço de liberdade. A liberdade que lhes possa abrir portas para uma mistura prazerosa de compromissos com vida.   

    EVOLUÇÃO?
    A família de Gabriel e Luisa não inventou este estilo de vida. Apenas faz parte do gigantesco contingente habitacional do planeta que passa dias e noites de maneira apressada. Pessoas que transitam a pé pelas calçadas ou ocupam veículos de todos os portes dentro ou fora das cidades. Pessoas que quase não mais dedicam tempo ao diálogo sobre coisas amenas. Pessoas que só trocam palavras quando muito necessário. 
    São bilhões de pessoas divididas numa imensidão de países. Todas, entretanto, com a cultura do dever de empreender o esforço máximo. Corre-se atrás de um suposto progresso como se isso fosse essencial à existência. São pessoas que já ao nascer ocupam creches ou escolinhas de diferentes gêneros. Vão aprendendo desde cedo a serem "escravos bem comportados e conformados".
    Escravos? Palavra aparentemente agressiva... Não é verdade? Mas é escravo mesmo. As regras sociais e políticas do planeta colocam o ser humano em um círculo vicioso que não lhe dá muito espaço para a alegria. Na luta pelo progresso social - ou do seus país - o sujeito relega a um plano muito insignificante os seus mais íntimos interesses. Trabalha, trabalha, trabalha... - quando, se pudesse escolher, ficaria por longas horas ou dias inteiros sob as carícias do sol. 
    Vai o ser humano seguindo a marcha não escolhida... A marcha que lhe ditam desde o primeiro minuto de vida. A marcha que o impede de concluir que, ao invés de cenário de martírios, este mundo foi feito para ser paraíso. (Autora: Aline Brandt - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais N° 9610/98)

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